A nostalgia tem destas coisas. Quem nunca sentiu saudades de um belo relato de futebol pela rádio, num domingo à tarde? E quem nunca se deleitou com os lindíssimos nomes dos jogadores de futebol que fervilhavam nos relvados e pelados portugueses lá nos idos de 80 e 90? Pois bem, nós estendemos a nossa admiração aos nomes de árbitros. E, inclusivamente, fazemos cromos de árbitros.
Naquela altura, antes das modernices das múltiplas cores do equipamento e dos aparelhos de comunicação com o “árbitro auxiliar” (parece que “fiscal-de-linha” ou “bandeirinha” se tornou insultuoso), o árbitro equipava invariavelmente de preto. A menos que houvesse em campo uma equipa tipo Académica, Tirsense, Caldas, etc. – aí, a cor da camisola era um branco sujo, acinzentado, incaracterístico. O preto é que lhes ficava a matar, com golas brancas protuberantes. Eram os saudosos tempos do “boi preto”. Das bancadas, um coro uníssono de vaias tratava todos por igual, qual manifestação democrática dos pós-25 de Abril. Não serás um “touro amarelo” nem um “búfalo vermelho”; não, amigo árbitro: eras um “boi preto”, de Norte a Sul do país, passando pelas ilhas; eras um “boi preto”, fosses pobre ou rico, corrupto ou não. Concomitantemente, escutavam-se silvos trazidos das arenas, assobios imitadores da tourada, como que reforçando a imagem do “boi preto” que acabou de apitar uma falta duvidosa contra a nossa equipa.
Os árbitros, contudo, procuravam diferenciar-se entre si, insatisfeitos por serem apenas mais um “boi preto” a pastar pelos campos de Portugal, várias vezes indefesos e deixados à mercê de impropérios e alvos de arremessos de objectos provenientes do peão. Não tinham muito por onde escolher, contudo. Eles eram marcadamente gordos, carecas, baixinhos e usavam bigode. Pareciam ser agentes da GNR com um hobby dominical. Apitavam, na sua globalidade, mal. A única forma de se distinguirem seria através de um nome invulgar.
Aí está, uma excelente forma de colmatar a ausência de individualidade que grassava na arbitragem portuguesa. Um nome esquisito. Se te chamasses João Aquilino Silva Mafamude, o teu nome enquanto árbitro seria, inquestionavelmente, Aquilino Mafamude. A tua associação regional também seria, preferencialmente, fora dos grandes centros, ou não estivesse em vigor a regra de que não podias apitar uma equipa da tua associação (embora pudesses apitar o jogo entre duas equipas da tua associação). Portalegre, Castelo Branco e Vila Real eram extremamente bem-vindas, por exemplo. Suspeitamos que havia mesmo quem desse nomes esquisitos aos filhos já antevendo a carreira de árbitro que se seguiria.
E eis o que todos esperam: sangue. Querem provas desta realidade que vos transmiti? Aqui vão elas, umas mais recentes, outras mais antigas; algumas mais célebres, outras caídas no esquecimento: Alder Dante (Santarém); Ezequiel Feijão (Setúbal); José Leirós (Porto); Sepa Santos (Lisboa); José Rufino (Faro); Fortunato Azevedo (Braga); Donato Ramos e Isidoro Rodrigues (Viseu); Veiga Trigo (Beja); João Simãozinho (Leiria); Luís Reforço (Setúbal); António Rola (Santarém); Juvenal Silvestre (Setúbal); Serafim Alvito (Portalegre?); José Silvano (Vila Real); Francisco Caroço (Setúbal?); Carlos Estriga (Santarém); Porém Luís (Leiria); José Guímaro (Coimbra) e o celebérrimo Carlos Calheiros (Viana do Castelo).
E, sem querer entrar em pormenor pelo submundo dos árbitros assistentes, houve também o João Crujo, o António Pardal, o Manuel Burrica, o José Chilrito, o Carlos Vigário, o Manuel Quadrado, The Artist Usually Known As The Ferrari Of Setúbal, etc..
E, sem querer entrar em pormenor pelo submundo dos árbitros assistentes, houve também o João Crujo, o António Pardal, o Manuel Burrica, o José Chilrito, o Carlos Vigário, o Manuel Quadrado, The Artist Usually Known As The Ferrari Of Setúbal, etc..
Depois ainda existiam os que se diferenciavam pelo aspecto, como Rosa Santos (Beja; o protótipo do árbitro clássico português), Mário Leal (Leiria; gordinho, quase quadrado, pouco veloz, fiava-se no golpe de vista), Miranda de Sousa (Porto; uma barba cerrada que provocava inveja ao mítico Fernando Chalana com 17 anos, semelhante à dos irmãos Calheiros) e Neves Fernandes (Braga; bigode acompanhado por uma risca de cabelo basculante que procurava ocultar a calvície galopante – imaginem Fernando Seara em 1995); e aqueles que, tendo um nome aparentemente normal, tornavam a sua arbitragem num inferno, como Martins dos Santos, do Porto, merecedor de um post só para si, tamanha a profusão de cartões que distribuiu. Mas, “make no mistake”: muitos dos árbitros acima citados também eram assustadores no plano técnico – apenas relegaram esses defeitos para segundo plano através do seu nome esdrúxulo ou da sua aparência peculiar.
Nos dias que correm, Carlos Xistra (Castelo Branco), Elmano Santos (Madeira), André Gralha (Santarém), Cosme Machado (Braga) e Olegário Benquerença (Leiria) prolongam a tradição. Mas a vulgaridade de Rui Silva (Vila Real), Rui Costa (Porto) e Hugo Miguel (Lisboa) augura um futuro pouco positivo aos ex-“bois pretos”. Enfim, ao menos subsiste a polémica em torno deles, da qual se alimentam os jornais e programas desportivos, bem como as cavaqueiras entre tertúlias de café à segunda-feira.
O que é feito destes sonantes nomes do passado? Quase nenhum deles assumiu a sua preferência clubística, mantendo-se fiéis ao Lusitano de Évora, Oriental e Aliados de Lordelo. Algumas excepções confirmadas: Vítor Pereira (um sportinguista caído em desgraça junto dos seus), Donato Ramos e António Rola (Benfica). Este Rola (que mereceu slogans emblemáticos por parte de alguns clubes – “abriu a caça à Rola”, exortava-se de Chaves) foi vereador em Rio Maior. José Leirós também abraçou a política em Matosinhos. José Silvano possuía uma vinha no Peso da Régua. José Guímaro e os seus “quinhentinhos” desapareceram lá para os lados de Condeixa-a-Nova. Veiga Trigo era o eterno sindicalista efervescente do Alentejo. Juvenal Silvestre foi observador de árbitros, uma profissão aliciante para muitos. Alder Dante é um comentador sobejamente conhecido. Muitos deles serão empresários, bancários, técnicos de seguros e algum deles deve trabalhar nalguma loja desportiva.
O grande espanto é a já mui afamada veia lírica de Isidoro Rodrigues: de árbitro a artista foi apenas um pequeno passo. Das sinfonias de apito passou às melodias de guitarra. Do amarelo injusto saltou para composições do calibre de “Memórias” (2003), gravado nos estúdios Produsom de Viseu, um álbum de 12 faixas merecedor de uma remistura, devidamente intitulada “Memórias Remix”. Em 2004, ressurgiu com “Laços de Amor”, para quem pensava que um ex-árbitro não sente. Em 2006, estava na calha o 3º álbum duma carreira discreta mas orgulhosa. Mas, provavelmente, Isidoro fez uma de Radiohead e distribuiu gratuitamente no seu MySpace os mp3’s, que eram avidamente pretendidos pela enorme legião de fãs que povoa a área entre Mortágua e Armamar. Contudo, Isidoro mantém o bigode e o nome artístico. Reconfortemo-nos, portanto.
2 comentários:
Ahhh, que saudades... Agora o insulto "ó boi" já não significa o mesmo. É tudo um bando de "florzinhas" às cores...
O António Rola é o Phil Collins português. Com bigode.
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